Com base na obra A Poética de Aristóteles, Brenda Laurel introduziu uma nova visão da relação homem-computador, fazendo uma analogia entre o mundo computacional e o universo do teatro. Esta é uma visão que acaba por dar o mote para estudos sobre linguagens de mediação da interacção homem-computador, como é o caso do artigo “Criatura Digital – Redimensão do Lugar Cénico”, de Bruno Giesteira e João Mota. Neste artigo, acaba por ser apontado como caminho uma busca pela imersividade do público como nova forma de pensar e comunicar com o público.
De facto, a meu ver, a imersão do público/utilizador no próprio sistema acaba por ser uma boa estratégia para aumentar o grau de emotividade sentido durante a interacção. Com efeito, ao participar como agente activo da cena / interface, o utilizador sentir-se-á muito mais ligado ao sistema, sentindo-o um pouco como obra sua, o que resultará numa ligação emotiva entre interface / utilizador mais forte e consolidada.
Como Donald Norman explica na sua obra Emotional Design: Why We Love or Hate Everyday Things, um objecto tem dimensões que vão além da sua função e da sua utilização, dimensão essa que se relaciona com o utilizador, o seu feitio, o seu humor, o seu contexto situacional e a sua simpatia pelo objecto. Norman argumenta até que o lado emocional do design pode ser mais crítico para o sucesso de um produto do que os seus elementos práticos. Evidencia que as pessoas criam laços emotivos com os objectos, e estes deixam de ser simples objectos para passarem a ser muito mais do que isso e ganharem até uma significação própria.
Ora, essa significação acaba por ser a chave para conseguir alcançar uma certa imersividade do público / utilizador com a cena / interface. De facto, o facto do público passar a participar na cena ou no produto como agente activo permite-lhe viver a acção, e isso acaba por criar ligações entre público/utilizador e a cena/produto que enriquecerá a afectividade e simbolismo que o utilizador atribuirá ao lugar/ cena, resultando numa linguagem de mediação totalmente diferente (e sem dúvida mais rica) do que seria se não houvesse esta relacção em termos de emotividade.
Segue-se assim rumo à direcção de um meta-meio computacional, em que “a contemporaneidade da obra de arte, definindo-se pela conquista da Ideia, é reflexo da cultura e acontecimentos da sociedade, e da experiência sensorial, emotiva e intelectual do público, exigindo uma maior versatilidade de meios para transmitir o Conceito. A representação é experimentada como real.” (Criatura Digital – Redimensão do Lugar Cénico) Desta forma, o público conquista relevo como agente activo que tece uma identidade, uma afectividade e simbolismo relativamente ao Lugar Cénico, que passa, deste modo, a ser encarado como algo para além de um espaço, para se tornar local de acção e significação, de referência afectiva e partilha de sentimentos. Deste modo, assiste-se a uma tentativa de dissolver as fronteiras entre a cena e a vida real.
Ora, essa tentativa tem vindo a ser transportada também para o mundo computacional. De facto, é cada vez mais frequente a tentativa de imergir o público na acção, que se revelou como objectivo de muitos autores como Stanislavski, Wagner, Artaud, Meyerhold, Brecht e muitos outros. Assim, a visão de interface como ferramenta simplesmente cognitiva eu lugar à tentativa de elaboração de interfaces multisensoriais e de linguagens de mediação naturais para um contacto multisensorial e imersivo com a informação. Esta seria (ou será) uma forma de tornar o acto de interagir mais natural e espontâneo, tal como a conversação, promovendo deste modo a imersão do agente humano através de uma maior proximidade sensorial e emotiva com o sistema.
Contudo, este meta-meio computacional exige novas linguagens de mediação.
Não é de estranhar que Brenda Laurel tenha feito uma analogia entre o mundo computacional e o universo do teatro, tendo em conta o seu background relacionado com o mundo teatral e tendo em conta que, a seu ver, o design de interfaces acaba por ser também uma forma de arte:
“(…)interface design requires imaginative and creative solutions that cannot be inspired by science alone. Metaphors, games, rich sensory environments, virtual realities, illusion? Such is the stuff that art is made of.”
Assim, Laurel aponta o teatro como sistema de mediação, “onde a acção é confinada ao mundo da representação, situando todos os agentes - humanos, virtuais, evocativos e performativos - no mesmo contexto” (Criatura Digital – Redimensão do Lugar Cénico, Bruno Giesteira e João Mota). Desta forma, a proximidade do público/utilizador com as acções executadas permite alcançar novos níveis de experiência emotiva e sensorial, em que há uma maior proximidade entre o utilizador e o sistema.
Deste modo, segundo Laurel, a liberdade e proximidade do participante ficam ambas condicionadas por várias variáveis do sistema de mediação, como a Frequência (nº de vezes que um participante pode intervir numa acção), o Alcance (nº de opções disponíveis), o Significado (repercussão das opções do utilizador no decorrer das acções), os inputs cinestésicos (que definem o nível de imersividade do participante e consequente proximidade entre as acções desempenhadas) e os outputs visuais (resultados dos inputs).
Estas variáveis acabam por condicionar a liberdade e proximidade do participante na medida em que estabelecem o modo de funcionamento do sistema (barreiras, linguagem de interacção com o utilizador, etc).
Brenda Laurel explica também a forma como os seis elementos qualitativos do drama – Acção, Personagens, Pensamento, Linguagem, Padrão e Espectáculo – apontados por Aristóteles em A Poética se adaptam ao universo computacional.
Como é explicado no artigo “Criatura Digital – Redimensão do Lugar Cénico”, de Bruno Giesteira e João Mota, o elemento “Acção” é o objectivo máximo das linguagens de mediação. É a Causa Formal de todos os elementos qualitativos da representação e dita uma Linha de Comportamento que incita o participante a formular um objectivo, tendo em conta “affordances na personagem” (forma como cada um interage com as possibilidades e restrições do sistema e a decisão tomada pelo participante) – Pensamento (elemento relacionado com a cognição, emoção, razão e causa formal do elemento Linguagem, padrão e Espectáculo), e a representar uma acção através de determinados meios – Linguagem.
No entanto, no universo computacional, assim como no teatro, não há acção sem personagem, que é nada mais que o elemento responsável pelo desencadear de acções. No entanto, quando um utilizador interage com um sistema passando a ser um personagem, passa a adquirir uma espécie de personalidade ditada pelas restrições e predisposições do sistema através de Internal traits e External Traits, que definem a nível estrutural do sistema e a nível cognitivo respectivamente o que o participante pode ou não fazer. Ou seja, quando um utilizador interage com um sistema, deixa de ser ele próprio para passar a ser o personagem que o sistema lhe permite ser.
Neste sentido, Brenda Laurel teve influências de Stanislavski ao entender o participante como um potencial personagem, que teria então necessidade de encontrar um compromisso entre os Motores da Vida Psíquica (idiossincrasias do agente humano) e uma Linha de Comportamento (constituída pelo conjunto de restrições e induções do meio tecnológico) sugeridos por Stanislavski. Ora, este compromisso desencadeia um Estado Criador no agente humano que o orienta rumo ao Super Objectivo, que não é mais que o objectivo principal da interacção.
Efectivamente, o contributo de Stanislavski foi muito importante para o mundo representativo, o que acabou também por se transpor para o mundo computacional com o estudo de Brenda Laurel. Em 1898, Stanislavski foi fundador do Teatro de Arte de Moscovo (MKhAT) juntamente com Vladimir Nemirovich-Danchenko, local onde começou a desenvolver o seu tão famoso Método, com base na tradição realista de Aleksandr Pushkin. O seu método consistia no trabalho do actor para o desenvolvimento de personagens e cenários realistas. Para tal, os actores deveriam recorrer à sua Memória Afectiva, pensando em algum momento das suas vidas em que tivessem sentido as emoções que a personagem sentiria numa determinada situação e reproduzir essas emoções para alcançar uma performance mais realista e não tão teatral, como a defendida por Meyerhold, que priveligiava o lado performativo e biomecânico da arte de representar. Assim, recorrendo à sua Memória afectiva, os actores seriam capazes de retratar de forma mais natural, realista e genuína as emoções e sentimentos do personagem que representam. Ao pôr em prática o Método, o actor tem que fazer uma análise aprofundada das motivações do seu personagem, desvendando qual o seu Objectivo em cada cena, e qual o Super Objectivo do personagem ao longo de toda a peça.
Para ajudar os actores a decifrar esses objectivos e Super Objectivo, Stanislavski sugeriu uma maneira de o fazer, através do factor “se”, que consiste na atitude dos actores se colocarem na pele do seu personagem, fazendo perguntas a si mesmo do género “Como é que eu reagiria se estivesse na mesma situação que o meu personagem?”
Para o cumprimento do seu Método, Stanislavski apontou então dois conjuntos de leis:
› Leis simples, compostas por actividade, imaginação, concentração, descontracção, Sequencias e objectivos, Fé e Sentido da Verdade;
› Leis Complexas, compostas por Memória Afectiva, Contacto e Adaptação.
Ora, evidencia-se a importância do contributo de Stanislavski para a compreensão dos processos de escolha do participante. De facto, como Bruno Giesteira e João Mota apontam no seu artigo, “o agente humano entende a estrutura do sistema e é guiado através dele por uma série de sequências que o obrigam a perguntar-se, em cada uma delas, o que vai fazer”, definindo assim o seu Objectivo.” Por sua vez, adaptado à Linha de comportamento do Sistema - que deverá ser verosímil e ao mesmo tempo capaz de estimular a criatividade e o lado emotivo do agente humano - cada objectivo desencadeia uma acção, e o conjunto das respostas a todas as sequências conduz ao Objectivo Principal.
O sistema deverá ainda gerar situações em que a Memória Afectiva do agente humano seja requisitada, levando o utilizador a sentir emoções já experimentadas no passado, dando lugar a sensações de ilusão que se aproxima fortemente da realidade e resultando assim na imersão do participante.
Por sua vez, o Factor “se” estimula a criatividade no agente humano, reflectindo Imaginação e resultando em Actividade , pelo que se poderá concluir que este factor é instituído no sistema como maneira de induzir acções.
Por tudo isto, evidencia-se que Stanislavski reforça o lado dramático / emotivo em detrimento da faceta operativa, através da introdução de factores emotivos e psicológicos, reflectindo-se assim a sua faceta de percursor do teatro naturalista. Assim, a perspectiva de Stanislavski prende-se muito mais com os elementos “personagem” e “pensamento” adaptados por Brenda Laurel da obra de Aristóteles, ao contrário da perspectiva de Meyerhold, que dá primazia ao lado performativo da acção, estando muito mais relacionado com os elementos qualitativos da acção “Linguagem” e “Padrão”.
De facto, estes dois elementos estão muito relacionados com o modus operandi da acção. Se não vejamos: por um lado o elemento Linguagem relaciona-se com os mecanismos físicos utilizados para despoletar determinada acção; por sua vez, o elemento Padrão diz respeito ao lado sensorial da acção, ao feedback dado pelo sistema para materializar o elemento Linguagem através de sons, imagens ou movimento.
Por tudo isto, evidencia-se que as linguagens de mediação podem aprender muito com a linguagem teatral. De facto, tal como no teatro, as linguagens de mediação têm como objectivo último o despoletar das acções. Deste modo, se o utilizador / público estiver perante um interface / lugar como espaço de afectividade e simbolismo, atribuir-lhe-á significação e será “sugado” para um estado de imersividade que o chama à acção.
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